Noções preliminares acerca do sentido autêntico da Sagrada Escritura
Dom Jean de Monléon
A Sagrada Escritura tem por objetivo essencial fazer com que conheçamos alguma coisa acerca da natureza de Deus, de Sua vida, de Sua infinita perfeição e da felicidade que Ele reserva ao homem no Seu reino eterno.
Mas Deus, diz são Paulo, habita numa luz inacessível: Seu ser incorpóreo, incomensurável, absolutamente simples, não pode ser atingido pela inteligência da criatura presa ao mundo material. Nenhuma concepção humana pode elevar-se a Ele, nenhum pensamento pode alcançá-Lo, nenhuma língua é capaz de exprimir adequadamente o que Ele é. E no entanto o homem não poderia encontrar a felicidade e realizar o fim ao qual ele foi chamado sem saber alguma coisa d’Ele; pois ninguém, dizem os filósofos, deseja aquilo de que não tem nenhuma ideia: ignoti nulla cupido.
Para colocar-Se ao alcance da criatura, para dar a ela a possibilidade de contemplar com os enfermos olhos da carne os Seus eternos esplendores e as Suas belezas inefáveis, Deus dignou-se envolvê-los como que por um véu e escondê-los sob símbolos adaptados à nossa condição terrestre. Ele os traduziu à língua dos homens, assim como disse ao profeta; Ele se utilizou de imagens sensíveis, tomadas das cenas da vida terrestre, para explicar aos nossos espíritos limitados o que podem ser as realidades do mundo invisível. É assim, por exemplo, que Ele compara o Céu a uma cidade cujos muros são feitos de pedras preciosas, cujo solo é pavimentado de ouro transparente etc. Na sua afeição para com o gênero humano, “Ele escondeu o que é inteligível sob o que é material, e o que ultrapassa todos os seres sob o véu dos próprios seres; Ele deu forma e figura àquilo que não tem forma nem figura, e, tanto pela variedade quanto pela materialidade desses emblemas, tornou múltiplo e palpável o que em sua essência é simples e incorpóreo".
Assim, quando abordamos a Sagrada Escritura, nessa lectio divina, que São Bento nos prescreveu enquanto obrigação diária, não devemos tratá-la como se fosse um livro qualquer e no decorrer da leitura contentar-nos com os eventos que constituem a sua trama. Não é para nos dar a conhecer os detalhes da história dos judeus que a Igreja põe em nossas mãos o Antigo Testamento. Não são as reações pessoais de Davi face às provas ou as alegrias da vida que buscamos encontrar nos Salmos. Se nos apegamos a essas preocupações, encarceramos nossas almas na ruína de toda a vida interior, segundo a palavra do apóstolo, que diz: a letra mata. Para que a leitura seja fecunda, é necessário que a inteligência se eleve até ao espírito que vivifica; que ela colete, aqui e ali, uma parcela das realidades divinas ocultas sob a letra, como o fruto sob a casca; que ela entreveja, ao menos por instantes, a luz do sentido espiritual, ou místico, da Escritura.
Aqui não será o lugar de demonstrar a existência desse sentido profundo. Os testemunhos em seu favor são tão numerosos na própria Bíblia e nos ensinamentos dos Padres da Igreja que ela não poderia ser colocada em questão. O simples bom senso, a propósito, a reinvidica imperiosamente. Como explicar, por exemplo, que a Igreja conserve e venere com zelo tão enciumado até os menores detalhes das cerimônias da lei mosaica, que hoje em dia não se encontram apenas revogadas, mas proibidas aos cristãos, se esses detalhes não tivessem algum outro sentido para além do literal? Como ela poderia tolerar os absurdos que o texto sagrado oferece à primeira vista, se eles não ocultassem, sob sua aparente inconveniência, alguma significação secreta?
Neste artigo, queremos apenas buscar precisar o que é que se entende exatamente por "sentido místico" da Sagrada Escritura e mostrar o seu valor objetivo.
***
O sentido espiritual, de acordo com São Tomás, consiste propriamente nisto: "que os eventos que se desenrolam [na história sagrada] são ao mesmo tempo a figura de outra coisa".
Para expressar uma verdade qualquer, o homem pode servir-se de palavras ou de figuras. Deus, nos livros santos, emprega simultaneamente esses dois procedimentos: neles, por meio de palavras, Ele enuncia realidades tiradas da ordem humana, de onde se tem o sentido literal. Mas essas realidades, por sua vez, servem para ilustrar dados de ordem sobrenatural, de onde se tem o sentido místico. Esse amálgama de verdades transcendentes e pedaços da história de um povo é o que constitui o caráter único e inimitável da Sagrada Escritura, aquilo pelo que ela se distingue radicalmente de todos os livros que os homens possam conceber e escrever.
A instrução comum dos Pais da Igreja nos ensina que há quatro sentidos assim entrelaçados nos livros sagrados. O primeiro é o significado histórico, ou literal: é aquele que desponta do próprio texto. Os outros três, que juntos constituem o sentido místico, ou espiritual, chamam-se: sentido típico (ou alegórico), sentido moral (ou tropológico) e sentido anagógico. Eles respondem ao triplo objeto que Deus propôs a Si ao ditar os textos sagrados: clarear a nossa inteligência pelo conhecimento de Jesus Cristo; guiar a nossa vontade, fazendo-a discernir todas as nuances do bem e do mal; e despertar a nossa alma para o desejo da vida futura, pela manifestação das incomparáveis maravilhas da eternidade.
O sentido anagógico é muito mais profundo e misterioso do que os outros. Raramente o encontramos exposto pelos Padres. Ele vem daquela sabedoria dos perfeitos de que fala São Paulo, e que só pode ser compreendida pelos perfeitos. É esse o entendimento desse sentido que São Dionísio buscava na admirável prece que pôs no começo de sua teologia mística:
“Trindade supra-essencial, diviníssima, soberanamente boa, guia dos cristãos na sabedoria sagrada, conduzi-nos à sublime altura das Escrituras, que escapa a toda demonstração e ultrapassa toda luz. Lá, sem véus, em si mesmos e em sua imutabilidade, os mistérios da teologia aparecem por entre a obscuridade luminosíssima de um silêncio repleto de ensinamentos profundos: maravilhosa obscuridade, que irradia em esplêndidos clarões e, sem que se possa vê-la nem tocá-la, inunda da beleza das suas chamas os espíritos santamente cegos.”
Aqueles a quem Deus favorece assim, de uma luz especial, podem ler no sentido anagógico as magnificências da Jerusalém celeste. Quanto a nós, que só estamos ao pé da montanha, buscaremos ao menos captar, aqui e ali, algum vislumbre nos raros instantes em que esse mesmo sentido nos for inteligível.
O sentido típico, mais conhecido dos Padres pelo nome — hoje em dia confuso — de sentido alegórico, dissimula, sob as cenas e as personagens da Antiga Lei, as alusões constantes à vida ou à morte do Messias; e, sob os relatos tanto do Novo quanto do Antigo Testamento, as profecias concernentes ao corpo místico de Cristo, isto é, a Igreja. É esse sentido que, por exemplo, faz de Melquisedeque, de Isaque, de Moisés, de Josué, entre outros, figuras do Salvador: sacerdote, vítima, legislador ou conquistador do reino dos céus; ou, do barco em que subiram os apóstolos, um símbolo da Igreja. Nosso Senhor mesmo garantiu-nos a existência desse sentido e convidou-nos a buscá-lo quando disse: Sondai as Escrituras, é de mim que elas falam. Com efeito, elas falam d’Ele, e tudo que elas dizem se refere a Ele. A tradição dos Padres é unânime em considerar que Cristo é a pedra angular dos dois testamentos. Ele é a chave, o centro, o único tema, a luz que esclarece todas as figuras e sem a qual elas não passam de sombras sem cor nem forma.
O sentido moral (ou tropológico) é aquele de que fala São Paulo quando diz que tudo quanto foi escrito, foi escrito para a nossa instrução. Sob o véu de detalhes emprestados da natureza ou de relatos tirados da história, a Sagrada Escritura descreve o que se passa no mundo das almas. A exposição desse sentido moral enriquece o homem de uma multidão de conselhos que afiam o seu conhecimento do bem e do mal, que lhe ensinam o que se deve fazer e o que se deve evitar caso queira elevar-se na virtude. Àqueles que se aplicam a conhecê-la, ela brilha, diz São Pedro, como uma luz neste lugar de trevas; ela os guia nas estreitas sendas da perfeição. Ela mostra-lhes, por exemplo, sob a aparência grosseira e infinita variedade dos sacrifícios da Antiga Lei, a figura dos sacrifícios que as almas santas oferecem incessantemente a Deus no altar de seu coração. Os Padres a compararam a uma farmacopeia espiritual em que o homem encontra os remédios para todos os males de que possa sofrer aqui embaixo, bem como o segredo de todas as virtudes.
É evidente que a existência de um sentido de moral e de um sentido típico não abala em nada a realidade do sentido histórico. De os fatos contados pelo autor sagrado portarem em si uma revelação profética e uma lição moral não se segue de modo nenhum que eles não sejam rigorosamente verdadeiros. Quando dizemos, por exemplo, que a passagem pelo Mar Vermelho é figura do batismo, ou que a traição de Absalão anuncia a de Judas, não pretendemos restringir ou diminuir de modo nenhum o autêntico valor do relato desses episódios, tais como os lemos no Êxodo ou em Reis.
Essa é uma qualidade bem particular da Sagrada Escritura e que nenhum livro humano pode imitar, pois ela supõe ao mesmo tempo a presciência de Deus, que conhece o futuro como o presente, e a sua potência infinita, a qual, tendo em suas mãos todas as criaturas, delas dispõe como lhe apraz, para a realização dos seus desígnios.
Às vezes, os quatro sentidos se encontram unidos. É o caso, por exemplo, da maioria dos aspectos históricos do Antigo Testamento. Ao lermos no Êxodo que Moisés, no meio do deserto de Horebe, percebeu uma sarça que ardia, mas que não se consumia, devemos compreender a coisa em primeiro lugar no seu sentido literal e crer que o patriarca realmente viu, com seus olhos, o espetáculo assim relatado. Porém, em seguida, aprenderemos dos santos doutores que essa sarça era, no sentido alegórico, o símbolo do Verbo encarnado, no qual a natureza humana, apesar do seu contato imediato com a divindade, permaneceria íntegra e inteira, como a madeira no fogo; no sentido moral, que ela era a figura das tribulações pelas quais devem passar todos os justos, mas que não os consome; enfim, no sentido anagógico, a imagem da glória de que serão envolvidos os corpos dos bem-aventurados na vida eterna, sem nada abandonar de sua própria natureza.
Porém, às vezes o sentido literal se confunde com algum dos outros, fazendo com que restem apenas três sentidos. Ademais, quando, por exemplo, são enunciados preceitos que não terão mais lugar na vida futura, o sentido anagógico desaparece e os outros sentidos se reduzem a dois. Enfim, quando o autor fala da vida eterna propriamente, como na passagem em que São João nos diz que veremos Deus tal como Ele é, o sentido literal se faz um com o sentido anagógico. Nem a alegoria nem a moral encontram mais seu lugar, e não há outro significado a se buscar além daquele que vem das próprias palavras.
***
As noções anteriores permitem vislumbrar que a intelecção do sentido místico da Sagrada Escritura não é de jeito nenhum uma coisa fácil. Se além disso considerarmos que cada um dos três sentidos que se dão sobre o sentido literal, como três ramos principais no tronco de uma árvore, pode por sua vez dar suporte a um grande número de galhos; que, por exemplo, o mesmo fato histórico pode, só no sentido típico, ser interpretado ao mesmo tempo como Nosso Senhor, a Santíssima Virgem ou a Igreja; se a isso acrescentamos que o sentido literal deve ele mesmo ser compreendido num momento pelo sentido próprio e noutro pelo sentido figurado, que ele pode também inclinar-se a diversas interpretações; que o mesmo símbolo designa alternadamente os objetos mais opostos, como, por exemplo, o leão, que às vezes é a imagem de Cristo, às vezes a do demônio; que a mesma personagem, no mesmo relato, representa entidades bem diferentes, uma depois da outra, assim como podemos ver pelo caso de Tamar no capítulo XXXVIII do Gênesis, que tem sucessivamente, no mesmo episódio, o papel da gentilidade e o da Igreja; se refletirmos em tudo isso, conceberemos facilmente que a explicação da Sagrada Escritura é uma ciência muito difícil, e que há algo de temeridade em se querer descobri-la por suas próprias luzes. "Se toda ciência, por fácil e ordinária que seja," escreve Santo Agostinho, "só se pode alcançar com a assistência de um homem que a possui ou a de um mestre, o que haverá de mais orgulhosamente temerário que não se querer conhecer os livros dos divinos mistérios pelos ensinamentos de seus mestres?"
Em nossos dias, face aos progressos da exegese racionalista, não poderíamos repetir isto com insistência o bastante: a Sagrada Escritura não pode ser perscrutada e explicada sem auxílio superior. A luz das ciências naturais é impotente para descobrir os seus segredos e sondar suas profundezas. No misterioso labirinto de suas significações entrelaçadas, a razão humana, sob pena de se perder, não deve se aventurar sem obstinadamente apegar-se aos passos de um guia autorizado, colocando os seus passos junto com os passos dos doutores reconhecidos pela Igreja Católica, a única em condição de compreender a Sagrada Escritura no seu verdadeiro sentido. Eis por que essa Igreja só permite traduzir-se a Bíblia em língua vulgar se for para esclarecer o texto por meio de notas tomadas dos Padres ou de teólogos aprovados. Eis por que ela se mostra tão hostil à difusão indiscreta dos livros sagrados, tal como a praticam as Sociedades bíblicas. Eis porque os mestres do pensamento cristão, na época escolástica, só liam o texto sagrado quando encaixado nas Glosas interlineares, isto é, num compêndio da tradição.
Sem dúvidas, a fidelidade em seguir os ensinamentos dos Padres não impede a razão humana de buscar ainda mais a explicação das Escrituras. Pelo contrário, os progressos das ciências naturais, históricas, filológicas e outras, a necessidade de responder a novas heresias e de refutar as interpretações errôneas de autores não católicos, permitem a cada geração dar sua contribuição ao esclarecimento dos livros divinos.
Sem dúvidas ainda, a submissão dócil às lições dos Padres não implica necessariamente a aceitação cega de todas as explicações dadas por cada um deles: nenhum dos doutores possuir, por si mesmo, o privilégio da infalibilidade, e acontece a muitos deles o enganar-se acerca desta ou daquela questão. Sua autoridade só assume caráter indiscutível quando se encontra acompanhada de seu consentimento unânime.
Entretanto é um erro acreditar, como fazemos com muita frequência, que esse consentimento unânime é uma fênix que só se encontra nos mais altos picos do dogma. Aqueles que só leem os Padres ao acaso e sem conhecer a gama dos diferentes sentidos da Escritura surpreendem-se por encontrar, nesses veneráveis autores, tantas divergências aparentes na explicação de uma mesma passagem. Essas pessoas facilmente creem que há tantas interpretações quanto há autores, e fazem pouco caso das exposições acerca dos livros sagrados que os Padres nos deixaram. Mas, se fizermos uma leitura assídua delas, se temos ânsia por abordá-las à luz da fé e sem o ridículo preconceito que consiste em crer que essas inteligências geniais careciam de espírito crítico, não teremos dificuldade em ver a maravilhosa harmonia que reina entre os doutores, e como suas opiniões, bem longe de se contradizer, se completam perfeitamente e se esclarecem entre si, revelando os aspectos diferentes ou os degraus sucessivos de uma verdade rigorosamente una. Perceberemos sem esforços o caráter profundamente coerente dessa tradição católica, que, nascida do Espírito Santo, assim como a própria Escritura, se une a esta nos seus mínimos detalhes, tornando-se com ela um bloco indissolúvel: bloco ao mesmo tempo sólido e puro como o diamante, bloco de verdade descido do céu, desposado no tesouro da Igreja e do qual a alma fiel toma por sacrilégio tirar para si mesmo a menor parte.
***
O sentido místico da Sagrada Escritura é muito diferente das lições morais que a cada um é permitido tirar por conta própria a partir da leitura do texto, ou das aplicações de alguma passagem que se possa fazer à vontade, acerca de alguma personagem ou algum evento de nossa escolha. O sentido místico tem um valor rigorosamente objetivo: ele é uma realidade em si, independente de todas as nossas concepções pessoais. Nada seria mais incorreto do que, na exposição que os Padres fazem dele em seus escritos, atribuir os seus comentários à riqueza de sua imaginação e crer que eles tiram formulações da própria cabeça. Eles sempre se atentaram energicamente a não fazer nada desse gênero e nunca pretenderam ser outra coisa mais que testemunhas da tradição, os porta-vozes de um ensinamento que eles mesmos receberam de seus mestres. "Eles explicavam as Sagradas Escrituras," escreve Rufin, "não segundo seus entendimentos, mas segundo os escritos e as autoridades de seus predecessores, pois era evidente que estes haviam recebido da tradição dos apóstolos as regras de interpretação dos livros sagrados."
Daí que, quando São Gregório, por exemplo, nos mostra em Jó uma prefiguração do Cristo sofredor, não é ele que realiza uma aproximação fortuita entre esse santo homem e o Salvador: é o próprio Deus que, no segredo dos Seus desígnios eternos dispôs, sem atentar de jeito algum contra a liberdade das personagens, os detalhes do sofrimento de Jó, de tal forma que estes de antemão designassem a Paixão de Seu Filho.
Quando Santo Agostinho estabelece uma aproximação entre a pedra ferida por Moisés, que veio para saciar a sede do povo judeu, e a chaga do Deus sofredor que se torna fonte de vida para as almas fieis, a relação exposta entre esses dois fatos não é fruto de sua imaginação. Ela está fundamentada no testemunho do próprio São Paulo, que expressamente declara: E a pedra era Cristo.
Observemos a força dessa expressão. O apóstolo não diz que a pedra representava, significava ou figurava Cristo, mas que a pedra era Cristo. O que isso quer dizer? Então essa pedra não era pedra? Ou, então, o Verbo se uniu à sua substância, formando com ela uma única hipóstase, assim como com a carne de Cristo? Ou então, ainda, teria a Humanidade do Salvador se metamorfoseado em pedra, como a mulher de Ló tinha se transformado em estátua de sal? Deus queira que não! O rochedo que Moisés feriu com sua vara era uma pedra de verdade, assim como todos os rochedos do deserto. Mas o apóstolo diz: E essa pedra era o Cristo, para nos revelar a relação essencial que existia no pensamento de Deus entre a pedra e Cristo. Com efeito, deve-se saber que as coisas têm, ao mesmo tempo, um triplo "ser", de acordo com a linguagem dos filósofos: elas são, em primeiro lugar, na inteligência divina, enquanto modelo; depois, elas são no seu ser material e criado; enfim, elas são no pensamento do homem, enquanto abstração. No seu ser material a pedra era apenas uma pedra, mas na inteligência divina ela se encontrava tão estreitamente aparentada a Cristo, de quem ela era figura, que eram ambos um só, e ela era Cristo. Igualmente, ela só interessa à inteligência humana, quando esta a encontra no texto sagrado, porque ela é Cristo, assim como a estátua, ao atingir a nossa visão, evoca a ideia não da matéria de que é feita, mas da personagem que representa.
Ai daqueles que em nossos dias assumem a tarefa de comentar a Sagrada Escritura interessando-se mais frequentemente pela pedra — ou pelas pedras — do que por Cristo! Sob a pressão das necessidades apologéticas, a exegese moderna tem largado cada vez mais os métodos seculares de explicação dos livros sagrados. Ela transpôs esse estudo do plano da tradição ao da arqueologia e ao da gramática, limitando seu horizonte ao estudo literal do texto, do qual pretende, em nome da ciência, inquirir o significado exato à sofisticação da crítica, e não mais à voz da Igreja.
Nada mais prejudicial à fé e à piedade do mundo católico. "Todos os males que se dão no mundo", dizia Nosso Senhor a Santa Teresa, "vêm do fato de que não se tem perfeito conhecimento das verdades da Escritura." De todas as causas que podem explicar o progresso da irreligião nos últimos anos, nenhuma nos parece mais profunda do que essa. Fazer pouco caso do autêntico ensinamento espiritual da palavra de Deus para reduzi-lo apenas ao sentido histórico, ou a piedosas mas pessoais considerações, é privar a fé de um alimento que lhe é indispensável. Pretender comentar a Sagrada Escritura sem jamais expor o sentido místico verdadeiro, tal como a Igreja o tem pelos Padres, é oferecer um osso a alguém que tem fome, ou propor, contra o vento e a chuva, o abrigo de uma armação sem cobertura. Pois o sentido literal, considerado em si mesmo, é apenas isso. Ele é para a Escritura o que o esqueleto é para o corpo, o que a aramação é para o telhado. Não adianta de nada perder tempo em dissecar o esqueleto ou arranhar as vigas quando as almas pedem por comida e abrigo.
Digne-se a Sabedoria eterna, perdoando-nos a nossa presunção, fazer entenderem essas verdades aqueles que estão incumbidos de instruir os outros e dar à nossa época o gosto das explicações tradicionais da palavra divina, dessas explicações saborosas e luminosas que formaram as eras da fé e das quais se nutriram todos os santos.
***
Eis os princípios que nos inspiraram no modesto comentário do Apocalipse, o qual abordaremos, se Deus quiser, nos próximos números d'A Vida Beneditina. Fieis aos ensinamentos repetidos dos Soberanos Pontífices, tomamos por base do nosso estudo a versão latina da Vulgata e nos servimos do texto em grego apenas para esclarecer esta última, não para reduzir sua autoridade ou combatê-la. Essa versão nós a traduzimos e comentamos sumariamente, seguindo a cada passo as lições dos principais mestres que escreveram acerca do assunto, em particular as de Santo Alberto Magno, de Dionísio Cartuxo e também seguindo as duas Exposições sobre o Apocalipse, que se encontram entre as obras de São Tomás, mas que a crítica moderna prefere atribuir a um monge inglês do século XIII. Também recorremos aos comentários de Santo André de Cesareia e aos de São Beda, e à Glossa ordinaria de Valafrido Estrabão. Nós nos esforçamos para simplesmente pôr ao alcance dos leitores do século XX, de forma breve, a maneira de interpretar desses autores veneráveis. Que não esperemos, portanto, encontrar aqui cálculos acerca da época do fim do mundo nem aterrorizantes descrições dos cataclismas vindouros: o nosso único desejo em redigir este pequeno trabalho foi o de fazer passar na alma daqueles que o lerem algumas das alegrias profundas que nós mesmos experimentamos ao meditar nesses textos carregados de verdade, de esperança e de vida, e por vezes irradiados da luz que desce da Cidade de Deus.
Traduzido por: Instituto Dom Jean de Monléon